sexta-feira, 3 de julho de 2020

Ela se foi mas tá tudo bem

Como quem vem do futuro e tem permissão pra estudar a tapeçaria de cenas do passado, ali me coloco. Acompanho o contorno de sua silhueta até ela desvanecer por completo na bruma própria dos portais. Me pergunto quantas passagens ela ainda encontra do outro lado, e.

De quantas travessias se faz um ser.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Para Notre Dame com amor

Hoje é um dia especial. O primeiro do ano que uso uma calça jeans (quem me conheceu nos anos anteriores, sabe que calça e eu sempre fomos sinônimos), mas, ponto. Meu feminino floresceu às vésperas de 2019 desenterrando todos os vestidos e as saias do meu armário. Isso pra ilustrar que desde antes do ano começar, habito meus vestidos aplicando reiki e monitorando as roseirinhas que foram replantadas junto às roseiras antigas do jardim e não iam pra frente. Colocando as mãos sobre elas, me lembrava da primavera antecipada de 2018 — em especial das rosas abundantes que vi em frente à Notre Dame, dos botões do jardim dos fundos. Alguns meses se passaram nessa sobrevivência, recuperação e nutrição, até que hoje a primeira rosa “abril”, vermelha e rajada mais ou menos como intuí. Mais do que um dia especial, é um momento especial que vejo daqui, quase como se tivesse pedido por ele anteriormente. Quando me concentro nas rosas, um dos símbolos do coração/anahata que desabrocha, encontro a força de um feminino selvagem e divino que me inspira a seguir em frente. Nem sempre é fácil, ascender sobretudo. Enquanto os botões das novas rosas surgiam inspiradas no seu jardim de primavera, << la fleche >> queimou, partiu, ruiu, mostrou ao mundo algumas verdades. Fez lembrar de símbolos do feminino queimados nas sombras das tradições inquisidoras, instituições do patriarcado. Fez pensar no futuro, em Gaia que nos acolhe, nos nutre e permite a nossa existência narcísica não se sabe por quanto tempo. Neste momento especial o nodo norte em Câncer aponta ao feminino e é para ele que caminhamos coletivamente. Doa a quem doer, neste momento somos chamados à revolução pelo cuidado. Cuidar é dos verbos mais lindos e necessários, verbo vivido incansavelmente pelo feminino através dos séculos. Por isso mesmo lá do nodo sul em Capricórnio, vemos a autoridade dos nossos governantes e agregados que se debate para manter uma estrutura caquética à sombra de um masculino irascível e perverso. Aparte, não acredito no matriarcado porque olhando pra dentro aprendi que não existe separação, entendi que somos desde sempre as duas polaridades, que na união das duas e no acolhimento de suas sombras mora a cura que queremos ver no mundo. Acredito, from the bottom of my heart, na transmutação através do amor, na união das forças aliada ao amor incondicional. Acredito na troca e na cooperação e vejo surgir uma nova consciência que não é para alguns, que é para todos que tem um coração feito pra abrir, feito rosa, vermelha, branca, dourada, laranja, amarela e mesclada, de qualquer cor — as diferenças vão e devem sempre existir. Para todos que puderem aceitar sua vulnerabilidade intrínseca, que puderem acolher as duas polaridades e criar uma nova era onde ambas são uma mesma luz. Hoje as mulheres do ateliê se referiram a mim com a palavra exuberante, “estou feliz com as novas rosas”, eu disse. Ando vendo muitas borboletas ultimamente e me lembro daquele ditado sobre borboletas, que diz que o segredo é cuidar do jardim. Enfim. Essa calça jeans (acho que dá pra ver) eu tenho há dez anos e foi sem dúvida a calça que mais amei e usei na vida. Em breve, me despeço. Aos que acompanharam minha história até aqui, essa rosa que me faz feliz hoje não é minha, é da terra e é pro seu coração. Viva as mudas — mudar é bom! — e as primaveras que virão!


segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Deixar o piano para subir a montanha

Na faculdade apresentei uma performance. Escolhi um banco de praça que ficava por perto. Eu chegava até ele com uma mala grande, antiga, um cabelo mal preso, meio solto meio embaraçado e um casaco de viajante de cor clara, séria. Por baixo talvez um vestido, talvez sem sapatos. Uma mulher antiga, uma presença contemporânea.

Eu sentava no banco sem a mala, desconfortável. Trazia a mala para perto. Deitava em cima dela e do banco. A mala era mais dura do que o banco. Tentei posições diversas, as mais estranhas, para deitar com ela. A performance era uma prova da disciplina de dança, eu me formava atriz, eu pensava em Pina. Trazia o palco, o corpo, a vida, toda a minha expressão, as questões latentes ao meu desprendimento de atriz.

Quando demonstro não haver posição possível, que aquela mala não fazia mais sentido, quando finalmente me desprendo, percebo meu público de forma marcada. Muita gente me olha (que sensação essa), entre a entrada da faculdade e a cantina. Levanto e carrego a mala alguns passos adiante. Ali dentro, a atriz se sente constrangida com a sua proposta, mas é ela mesma quem se impulsiona porque sabe que depois do primeiro passo não há outra saída além dessa de seguir em frente.

Me dirijo com a minha mala incômoda mais alguns passos até meu público farto, percorrendo os olhos de todos. Abro as travas da mala para que escape dela o seu conteúdo. Calcinhas de garota, diversas. Contrastam com a sobriedade do resto. Ergo a mala, um pouco desajeitada, até mais ou menos a altura da cintura. Me aproximo ainda. Luto com o peso da mala com um braço e com o outro entrego uma a uma as calcinhas, as cores, os babados e as fitas que não fazem mais sentido. O público respira, curioso. Olhos nos olhos, um clima ritualístico.

Semi risos contrastam com a minha expressão limpa. O tremor interno dos ritos. A nudez da arte. A linha tênue que a gente atravessa e transforma tudo. De oculto a revelado. Intimidade distribuída. A inocência, uma bela lembrança. Aos poucos, eles entendem que me ajudam em minha passagem. Calcinhas entregues. A mala, em desuso, abandonada. Com o alívio de não carregar mais nada supérfluo, uma frase de Tadeusz Kantor escapa da minha garganta: “Não se entra impune para o teatro.”

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Desperta

Não sei quantos livros li em um dia, mais uma hora, metade de outro dia, que dia é hoje, o tempo corre. Abro-os, os leio até a metade, abro outro, outro e, assim mesmo, vou de um a outro, obstinada, ávida, morta de sede. Uma sede que veio agora, milenar, brotar das minhas entranhas como obra de um eclipse em lua de sangue. Volto a um livro e outro, não me contenho, tão, -- não sei bem a palavra --  desesperada, quanto os prisioneiros da caverna, libertos, depois da cegueira, obcecada, -- talvez isto -- em conhecer a verdade. A minha verdade, ao menos, aquela verdade que para acessar é preciso o outro, -- ou o mundo, -- que se identifica dentro dos livros, sem esforço, ainda que em momentos imprevisíveis. De tantos sobressaltos sou tomada e, de repente, num estalo, já que meus olhos se fixam num ponto sobre o meu toca discos, consigo parar depois de um parágrafo, com um nó na garganta. Bibi Ferreira fez este apontamento: são os artistas os melhores amigos da mulher, do homem. A eles recorremos sempre, em séries, em livros, em discos, inúmeras são as fontes, quando precisamos de algo que nos transporte. Escolho um disco de Chopin, o responsável em grande parte pelos meus encontros com o meu centro nas lições de ballet, sempre, carinhosamente, a liberar dos meus olhos o orvalho que na terra fez nascer Psiquê. Conforme gira o disco, emerge meu ser na digestão de palavras tão vastas, palavras geradoras de novos mundos, nascidos, agora também, da sorte dentro de mim. Sou fértil. A lâmpada da consciência causa certo transtorno, ainda que ninguém se veja sozinho ao deixar para trás o simulacro a que, certa vez acreditamos, deveria ser o mundo. Não é simples, nada está terminado, a realidade tem muitas camadas. Camadas a serem abandonadas. Uma de cada vez. Aqui vejo se dissolver mais uma. Um pouco mais perto da fonte, uma ilusão a menos. Persona, tela em chamas. Ainda que a cada um exista um tempo particular, que cada um respire por si, cada um em sua própria trilha e, ainda que a libertação cause dor ou medo, descubro, não tão tarde, como nas minhas primeiras experiências de ter um centro, que a todos os males do caminho a liberdade compensa. Da luz do conhecimento não há retorno, com os escombros das torres destruídas, soam as mais belas músicas. A beleza vem com certa ruptura, como o olhar desconcertante da maturidade.

A consciência chega até mim vestida de mulher. Sou eu mesma, em tamanho e brilho originais. Brilho abrasador. Sol de outro sistema, que decidi chamar de meu. Cada um pode dar início a uma nova era, num big bang cardíaco advindo da própria consciência que é também toda a consciência, porque ela pode estar aqui, mas não se encontra apenas aqui. Ela é tudo o que aqui há. É o que conheço, é todo o resto. E não é de agora. É de antes. É de sempre.

Da paisagem dourada enlevada por sua presença, a consciência me olha. Olho para ela e entendo que sou uma parte exilada dela mesma, que precisou se afastar para poder aprender a dizer por si própria, ver a si própria com distanciamento. Quando por instantes me perco no sono instantâneo dos pensamentos, ela me desperta como quem joga um pássaro para cima para testar a natureza de suas asas crescidas, dizendo: Voa!

sábado, 7 de julho de 2018

Para iniciados

Quartas de final com a Bélgica. Depois do almoço tive a intuição de que o Brasil perderia o jogo. Intuição forte, eu sabia. Avisei a minha família pra eles não se empolgarem muito com o jogo já que o Brasil perderia. A gente sempre sofre do alto das expectativas. Sabedoria, me disse um amigo mago de Florença, é não criá-las nunca. Pois, como estava combinado, fui pra casa de uma amiga, e foi lindo porque ela mora meio no meio do mato e as duas muito divinamente nos aproveitamos do paraíso e não vimos nada do jogo. Em vez disso, tomamos café sentadas nas cadeirinhas da sua filha e mergulhamos em questões ocultas, nossas e da existência em um todo. Do jardim imenso ganhei frutinhas cítricas. Aprendi tanta coisa com ela, aprendemos juntas. Porque não vimos o jogo não interiorizamos qualquer derrota. Viraram números numa nota da internet que ela leu por curiosidade. Dois mais um. A luz acabou entre um diálogo e outro, e foi quando outra amiga chegou pra transformar a casa escura. Com a luz de volta, vimos uma aranha marrom que antes estava quieta na parede, ensaiar uma pequena volta no chão. Tomamos café novamente, agora as três, na mesma mesinha <3
Voltando à aranha, quem mora em Curitiba sabe o que essa aranha representa e quem me conhece sabe que eu não suporto aranha. Cheguei perto dela, pra fazer um teste de coragem. De fato, muitas coisas que me assustavam antes, não me assustam agora. Pior, estou transformando as assombrações em minhas amigas. Quem sabe eu possa escrever: melhor, estou transformando as assombrações em minhas amigas. Melhor. Afinal é mesmo o medo que faz a gente ter coragem. E afinal é a gente mesmo que escolhe se quer tornar piores ou melhores as experiências.
Agora voltando à cozinha, me perdoem a tontura do vai e vem, mas bem, na cozinha eu encontrei uma pérola no chão, num dos cantos entre a pia e o balcão, enquanto ouvíamos histórias umas das outras, histórias meio pérolas. E ali entre um riso e outro eu me pego feliz.
Olhando pro meu dia já com creme no rosto eu penso que preciso sempre acreditar na minha intuição como hoje e acreditar sempre na abundância da vida, porque não importa a densidade do momento ou a tristeza da maioria, a gente sempre pode espremer o prazer que há nos sucos de fruta da vida pra beber em companhia. E pode escolher transformar monstros em aranhas, a gente pode escolher não entrar nos canais que fabricam disputas e derrotas. Em vez disso pode se provar uma fruta cítrica nova no jardim (onde se entende a abundância), tomar duas vezes café com mulheres grandes numa mesa pequena, dar a elas uma pérola esquecida por uma criança, receber delas o que não seria possível encontrar sozinha. É possível se colocar na frequência da beleza, do amor, da felicidade entre um riso e outro, da cura plena, das vitórias luminosas.
Não gosto dos que se autointitulam, desconfio dos que se gabam a importância de serem bruxos, afinal quem é sabe o preço que há em ser e não precisa se gabar. Mas já que sou bruxa faz muito tempo e já que estou madura, me gabo um pouquinho (e que os bruxos e as bruxas oportunistas não saibam). Quem quiser saber como termina a Copa, me pergunta.

terça-feira, 19 de junho de 2018

Vou embora daqui

Aprendi a calcular a roda da 
Fortuna
Entendi porque o GPS do meu 
Destino
Está sempre recalculando a rota.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

meditação

pra não quebrar um momento de silêncio, anotei:

ser pequeno é poder ser grande. estar vazio é poder ser completo. ter sentimentos latentes é poder ser tudo. o que passou e o que vai vir existem agora, neste momento. a tua percepção de mundo engrandece o universo. assim entendo o infinito.