quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Estrela não, sou uma constelação

A viagem começa na avenida Cruzeiro do Sul, 1800. O ônibus contorna o Tietê e entro com ele na estrada. Meu telefone entra manualmente no modo avião pro roaming não consumir toda a bateria. A cabeça se ajusta ao fom e eu durmo levinho, o suficiente pra despertar do outro lado. Se do outro lado eu pudesse gritar, teria dado um grito. Ao contrário, decido desacomodar a outra que dorme, pra que me ponha a dormir e olhe pela janela. Acordo, não penso, as mãos vão juntas abrir as cortinas do ônibus, a cabeça vai em sincronia levar os olhos até o alto onde o Cruzeiro do Sul brilha exatamente onde foco o olhar. Essa é uma repetição frequente e misteriosa: não importa a cidade, o ponto exato no mapa do hemisfério sul onde eu esteja, olho para o céu e encontro a pequena constelação em cruz, imediatamente. A claridade da Via Láctea é absurda no escuro da estrada, mancha o céu escuro como nuvens que o vento espalha. Olho tudo, acordada pelo meu eu mais desperto, que dorme enquanto eu vejo. Aí eu me pergunto se a sorte não é uma questão de despertar no momento exato, de ser guiada por uma parte inteligente e adormecida, que faz abrir os olhos na direção certa. Não tiro os olhos do céu, das curvas da Via Láctea em conjuntura com as curvas da estrada onde meu ônibus desliza movimentando as estrelas. (Se eu, depois de algumas curvas, contar que vi uma estrela cadente que fez tombar meu coração com ela, ninguém acredita. Por isso não vou contar, vou deixar que esse detalhe da minha noite de sorte seja só meu mesmo, como todas as memórias que considero especiais e infinitas -- pense em algo, faça um pedido.) De dentro do ônibus, olho o céu enlouquecida, oscilo entre um sono e outro, acordo uma parte minha e desacordo a outra. E é assim entre sonhos -- sobre estrelas de magnitudes únicas que formam uma única constelação -- que, no fim da viagem, despertamos em conjunto. Entre todos os meus eus que alternam de despertos a sonolentos, há uma garota que brinca de acreditar naquilo que inventa, e inventou pra si um amuleto da sorte a céu aberto, com uma meia lua e uma estrela bem posicionada sobre ela. Se no ônibus eu pudesse gritar, teria dado um grito. Ao contrário, desacomodei aquela menina adormecida do outro lado, para que fosse ela a ver a sua estrelasobrealua que eu via. Às quatro e meia da manhã, uma criança acorda, intrometida como uma pequena estrela, para ver a lua em forma de canoa carregando Vênus madrugada adentro. Nos olhos da criança sonolenta a lua minguante é imensa e não há nada mais brilhante do que a Estrela Dalva sobre ela. Às quatro e meia da manhã, olho o céu fora do ônibus e meu telefone fotografa fora do modo avião. Num erro do switch da câmera vejo na tela os meus olhos abertos.

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