sábado, 24 de janeiro de 2015

Cor do céu, de anil

Eu lembro bem do dia em que ganhei um balão de gás hélio. As crianças sempre querem um balão de gás hélio pelo máximo de tempo que puderem ou até ele não poder voar mais para serem delas para sempre. Eu ganhei um. Não me lembro da cor, mas lembro que era difícil andar com ele sem olhar pra ele o tempo todo. Por isso, alguém me dava a mão, para que eu pudesse seguir maravilhada olhando pra cima, sem tropeçar, trombar com alguém ou cair durante o passeio. Depois de passear com meu balão durante um bom tempo, segura, com seu fio bem amarrado ao meu pulso, eu o carreguei até o carro comigo. Eu, levando o meu balão pra casa, para ser para sempre meu.
A casa dos meus sonhos e dos meus pesadelos, foi durante muito tempo representada pela casa da minha vó materna. Quando a minha casa pegava fogo, quando o incrível Hulk me perseguia e eu me escondia debaixo da cama durante o sonho, a minha casa era a minha casa mas era igual à casa da minha vó. Quando eu dormia na casa da minha vó materna e abria os olhos pela manhã, meu primeiro sentimento era de estranhamento, precisava sempre constatar: "dormi em outra casa, ah, bom!"
A casa da minha vó existe até hoje, do mesmo jeito. Muita coisa mudou lá dentro, muito aconteceu nessa casa. Algumas situações se comparam a sonhos, outras a pesadelos. Eu frequento a casa da minha vó desde que nasci até hoje. Hoje tenho menos pesadelos, e também sonho menos. Nos sonhos, a minha casa já mudou bastante, assim como mudei de casa muitas vezes conforme as rajadas de vento. Alguns ventos se comparam a sonhos, outros a pesadelos.
No dia que ganhei o meu primeiro balão de gás hélio, o carro seguiu com meu balão amarrado ao meu pulso, até a casa da minha vó. Alguém me ajudou a sair do carro, provavelmente a mesma pessoa que me ajudou a amarrar o balão ao pulso, e eu voltei a andar maravilhada olhando para cima. Por isso, me deram a mão. Na varanda de acesso à entrada da casa, prestes a passar pela porta, um vento forte bateu e o meu balão passou sozinho pelos arcos da varanda, sem encontrar nenhuma coluna como obstáculo, nem bater no teto. Escapou ileso, foi valente. Descobri que era a minha vó quem me dava a mão quando tudo aconteceu. E não lembro de ter chorado na hora, talvez depois. Lembro de ter ficado perplexa olhando pro céu até o meu balão sumir. Aquele balão que era tão meu a tão pouco tempo, lá no céu, um lugar que parecia ser tão seu.
Entendi algumas questões profundas da vida naquele momento. Quando eu, bem silenciosa e atenta, vi o meu balão sumir. E, depois disso, perdi muitas outras coisas na vida. Sempre fico assim, diante das perdas: perplexa, olhando para aquilo que até pouco tempo era tão meu, parecer ser tão do céu. E de olhar silenciosa e atenta, compreendo coisas que não consigo explicar. As rajadas de vento chegam quando a gente menos espera. Os nós se desatam quando a gente menos espera. E a imagem do balão que foi embora, fica guardada para sempre.
Aconteceu, porém, que no dia 5 de janeiro de 2015, entrando na casa da minha vó pela porta da frente, atravessando a mesma varanda, encontrei outro balão de gás hélio, no mesmo lugar onde parei muitos anos antes, para ver o meu balão sumir. A cuidadora da minha vó, encontrou um balão perdido na rua e o levou para casa, mas não o levou pra dentro. Em vez disso, ela resolveu amarrar o fio do balão perdido, ao banco da varanda. Era um balão de menina, como o meu balão que partiu.
Me lembrei de um poema de Bulat Okudzhava, do livro Poesia Soviética, que contava brevemente a vida de uma mulher, partindo do fato de que, quando era uma menina, o seu balão fugiu. Por lembrar desse poema, tive um insight de sorte. Meu balão voltou a tempo, com um recado lá do céu: não é preciso lamentar se alguma coisa um dia partiu. Tudo há de partir. Tudo há de voltar. Para o céu, não há fim.
A cuidadora da minha vó não sabia o que estava fazendo quando amarrou o meu balão de volta no mesmo lugar em que o perdi. Não sabia que estava levando o balão perdido de uma menina, de volta para outra. Eu soube assim que o vi na varanda, porque isso era algo que cabia a mim. Depois de reencontrar o meu balão, eu o desamarrei e fiquei olhando para ele perplexa.

Entendi algumas questões profundas da vida naquele momento. Quando eu, bem silenciosa e atenta, vi o meu balão voltar. E, depois disso, ganhei muitas outras coisas na vida. Sempre fico assim, diante dos presentes: perplexa, olhando para aquilo que até pouco tempo parecia ser tão do céu, ser tão meu. E de olhar, silenciosa e atenta, compreendo coisas que não consigo explicar. As rajadas de vento chegam quando a gente menos espera. Os nós se atam quando a gente menos espera. E a imagem do balão que retorna, fica guardada para sempre.

*

A menina chora -- seu balão fugiu.
Tentam consolá-la, mas o balão sumiu.

A mocinha chora -- sua mão ninguém pediu.
Tentam consolá-la, mas o balão sumiu.

Mulher feita chora -- o marido a traiu.
Tentam consolá-la, mas o balão sumiu.

Vovozinha chora -- a vida se esvaiu.
O balão voltou, cor do céu, de anil.

Bulat Okudjáva (como o nome se desenha no livro).

Um comentário:

  1. Parece que estou vendo aquela menininha doce e linda que vc sempre foi .Muito bem escrito ,o texto faz um resgate com muita clareza sobre sentimentos perdidos que todos possuimos . Amei !!!! Bjus . Ana Cristina Vasconcellos

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