segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

meu poema é pra você.

em uma
xícara de café
faço correr a última gota;
viro a xícara
em minha direção
como se quisesse beber.

durante o movimento
vejo um buda
que se transforma
em uma mulher
meio princesa
meio antiga;
uma mulher
de vestido dourado.

pense na forma
de um buda
e me diga se
a gota de café
não fez um
passeio completo

eu digo;

algumas coisas
na vida
a gente descobre
não por um triz
nem por um fio
mas;
por uma última gota.

todas as imagens do mundo
foram criadas
e-s-p-e-c-i-a-l-m-e-n-t-e
para quem as viu;

você me vê?

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Da cor do mar

Fez seis anos, no Carnaval, que a luz da vida apagou dentro dela. Muitas vezes esta luz apaga antes do blackout que prenuncia o fim. Algumas vezes parece que não acende mais, mas a chave vira e a peça continua. Algumas vezes olhamos na direção daquilo que nos tira o brilho e, por hábito, não acreditamos que seja possível transformar o que não foi bom, o que não deu certo.

Algumas vezes sentimos o peso daquilo que não deu certo antes de nós. Algumas vezes, o coração sozinho, não dá conta de combater a morte que levamos, por descuido, para dentro. Algumas vezes não entendemos o suficiente de eletricidade e, no escuro, por orgulho ou pela falta, deixamos de pedir ajuda. E, complexas, esquecemos de olhar a parte esquecida que precisa de atenção.

Outras vezes, mais adiante, a gente passa a querer olhar para o brilho das coisas que ficaram esquecidas. E lembrar das coisas boas, das coisas que têm a cor do mar do Nordeste, das coisas que deram certo. Intuir que, das escolhas da vida, a principal, é escolher viver, viver bem, virar a chave da tristeza, ser feliz e iluminar. E intuir que dentro da escolha iluminada está o pacto de manter aberto o coração magoado, deixar sempre o peito aberto para dar espaço ao amor e à cura que dele irrompe.

Depois a gente passa a ter vontade de, no meio do dia, no meio da noite, deixar a luz da consciência acesa para ver com os olhos bem atentos, a poeira dos objetos de cena, toda a quantidade de cenários esquecidos, de peças nunca mais encenadas. Ver os objetos em desuso que mantivemos guardados para ter controle sobre algo. A gente passa a ter coragem de permitir que tudo seja levado pelo mar, de aceitar o vazio da limpeza, de descobrir a possibilidade infinita de recomeçar, descobrir que ela vem de dentro, porque já entendemos que quando nada mais resta, restamos nós mesmas.

Nesses dias de luzes bem acesas, encontrei seus olhos cor de mar num porta-retrato. Quando a distração ao redor terminou, parei para olhar com mais cuidado e profundeza em direção ao brilho. Vi raios de sol incidirem sobre o mar, me despi com a naturalidade praiana que ela emanou em vida e me pus a pensar sobre o que é natural. É natural que a gente se inspire por afinidade ou por apego em algumas daquelas que estiveram aqui antes. É natural a gente querer desistir. É natural que não seja óbvio ou fácil. É natural a gente se largar ou mesmo se perder. Está além do natural transcender.

Quem olha para o mar vez ou outra pode se lembrar de que viver não é preciso e navegar sim. Navegar é preciso! Oscilo entre o porta-retrato e o mar que me deu a coragem de olhar para coisas tão grandes e profundas, de olhar novamente para minha tia e agradecer o caminho percorrido por ela. E, através dela, vislumbrar o caminho de todas as outras que se sentiram sufocadas como nós. Quero ir além do natural, digo a mim mesma. Rezo para todas elas.

E mergulho por cenários carregados pelo mar muitos anos antes, objetos que me levam a entender as dificuldades destas mulheres, e me levam a querer pisar o território desconhecido da maioria delas, estrelas do mar desta constelação ancestral. Ao território não explorado da auto-estima, da valorização, da confiança plena, da auto-realização, ao território não explorado da felicidade, eu me dirijo. Todos os caminhos trilhados por elas me dão força, retiram das minhas profundezas as minhas capacidades perdidas, abandonadas, trancafiadas, esquecidas.

Sou Vênus, nascida da espuma, rompendo a concha. Recupero o fôlego depois do mergulho e piso com delicadeza o novo solo. Vejo que comigo estão todas elas, desnudas e libertas, do outro lado da gruta, da caverna, da ponte, da janela, do castelo, do rio, do monte. O lado da felicidade.

Quando uma se ilumina, iluminam-se todas elas.