sexta-feira, 27 de julho de 2018

Desperta

Não sei quantos livros li em um dia, mais uma hora, metade de outro dia, que dia é hoje, o tempo corre. Abro-os, os leio até a metade, abro outro, outro e, assim mesmo, vou de um a outro, obstinada, ávida, morta de sede. Uma sede que veio agora, milenar, brotar das minhas entranhas como obra de um eclipse em lua de sangue. Volto a um livro e outro, não me contenho, tão, -- não sei bem a palavra --  desesperada, quanto os prisioneiros da caverna, libertos, depois da cegueira, obcecada, -- talvez isto -- em conhecer a verdade. A minha verdade, ao menos, aquela verdade que para acessar é preciso o outro, -- ou o mundo, -- que se identifica dentro dos livros, sem esforço, ainda que em momentos imprevisíveis. De tantos sobressaltos sou tomada e, de repente, num estalo, já que meus olhos se fixam num ponto sobre o meu toca discos, consigo parar depois de um parágrafo, com um nó na garganta. Bibi Ferreira fez este apontamento: são os artistas os melhores amigos da mulher, do homem. A eles recorremos sempre, em séries, em livros, em discos, inúmeras são as fontes, quando precisamos de algo que nos transporte. Escolho um disco de Chopin, o responsável em grande parte pelos meus encontros com o meu centro nas lições de ballet, sempre, carinhosamente, a liberar dos meus olhos o orvalho que na terra fez nascer Psiquê. Conforme gira o disco, emerge meu ser na digestão de palavras tão vastas, palavras geradoras de novos mundos, nascidos, agora também, da sorte dentro de mim. Sou fértil. A lâmpada da consciência causa certo transtorno, ainda que ninguém se veja sozinho ao deixar para trás o simulacro a que, certa vez acreditamos, deveria ser o mundo. Não é simples, nada está terminado, a realidade tem muitas camadas. Camadas a serem abandonadas. Uma de cada vez. Aqui vejo se dissolver mais uma. Um pouco mais perto da fonte, uma ilusão a menos. Persona, tela em chamas. Ainda que a cada um exista um tempo particular, que cada um respire por si, cada um em sua própria trilha e, ainda que a libertação cause dor ou medo, descubro, não tão tarde, como nas minhas primeiras experiências de ter um centro, que a todos os males do caminho a liberdade compensa. Da luz do conhecimento não há retorno, com os escombros das torres destruídas, soam as mais belas músicas. A beleza vem com certa ruptura, como o olhar desconcertante da maturidade.

A consciência chega até mim vestida de mulher. Sou eu mesma, em tamanho e brilho originais. Brilho abrasador. Sol de outro sistema, que decidi chamar de meu. Cada um pode dar início a uma nova era, num big bang cardíaco advindo da própria consciência que é também toda a consciência, porque ela pode estar aqui, mas não se encontra apenas aqui. Ela é tudo o que aqui há. É o que conheço, é todo o resto. E não é de agora. É de antes. É de sempre.

Da paisagem dourada enlevada por sua presença, a consciência me olha. Olho para ela e entendo que sou uma parte exilada dela mesma, que precisou se afastar para poder aprender a dizer por si própria, ver a si própria com distanciamento. Quando por instantes me perco no sono instantâneo dos pensamentos, ela me desperta como quem joga um pássaro para cima para testar a natureza de suas asas crescidas, dizendo: Voa!

sábado, 7 de julho de 2018

Para iniciados

Quartas de final com a Bélgica. Depois do almoço tive a intuição de que o Brasil perderia o jogo. Intuição forte, eu sabia. Avisei a minha família pra eles não se empolgarem muito com o jogo já que o Brasil perderia. A gente sempre sofre do alto das expectativas. Sabedoria, me disse um amigo mago de Florença, é não criá-las nunca. Pois, como estava combinado, fui pra casa de uma amiga, e foi lindo porque ela mora meio no meio do mato e as duas muito divinamente nos aproveitamos do paraíso e não vimos nada do jogo. Em vez disso, tomamos café sentadas nas cadeirinhas da sua filha e mergulhamos em questões ocultas, nossas e da existência em um todo. Do jardim imenso ganhei frutinhas cítricas. Aprendi tanta coisa com ela, aprendemos juntas. Porque não vimos o jogo não interiorizamos qualquer derrota. Viraram números numa nota da internet que ela leu por curiosidade. Dois mais um. A luz acabou entre um diálogo e outro, e foi quando outra amiga chegou pra transformar a casa escura. Com a luz de volta, vimos uma aranha marrom que antes estava quieta na parede, ensaiar uma pequena volta no chão. Tomamos café novamente, agora as três, na mesma mesinha <3
Voltando à aranha, quem mora em Curitiba sabe o que essa aranha representa e quem me conhece sabe que eu não suporto aranha. Cheguei perto dela, pra fazer um teste de coragem. De fato, muitas coisas que me assustavam antes, não me assustam agora. Pior, estou transformando as assombrações em minhas amigas. Quem sabe eu possa escrever: melhor, estou transformando as assombrações em minhas amigas. Melhor. Afinal é mesmo o medo que faz a gente ter coragem. E afinal é a gente mesmo que escolhe se quer tornar piores ou melhores as experiências.
Agora voltando à cozinha, me perdoem a tontura do vai e vem, mas bem, na cozinha eu encontrei uma pérola no chão, num dos cantos entre a pia e o balcão, enquanto ouvíamos histórias umas das outras, histórias meio pérolas. E ali entre um riso e outro eu me pego feliz.
Olhando pro meu dia já com creme no rosto eu penso que preciso sempre acreditar na minha intuição como hoje e acreditar sempre na abundância da vida, porque não importa a densidade do momento ou a tristeza da maioria, a gente sempre pode espremer o prazer que há nos sucos de fruta da vida pra beber em companhia. E pode escolher transformar monstros em aranhas, a gente pode escolher não entrar nos canais que fabricam disputas e derrotas. Em vez disso pode se provar uma fruta cítrica nova no jardim (onde se entende a abundância), tomar duas vezes café com mulheres grandes numa mesa pequena, dar a elas uma pérola esquecida por uma criança, receber delas o que não seria possível encontrar sozinha. É possível se colocar na frequência da beleza, do amor, da felicidade entre um riso e outro, da cura plena, das vitórias luminosas.
Não gosto dos que se autointitulam, desconfio dos que se gabam a importância de serem bruxos, afinal quem é sabe o preço que há em ser e não precisa se gabar. Mas já que sou bruxa faz muito tempo e já que estou madura, me gabo um pouquinho (e que os bruxos e as bruxas oportunistas não saibam). Quem quiser saber como termina a Copa, me pergunta.