segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Deixar o piano para subir a montanha

Na faculdade apresentei uma performance. Escolhi um banco de praça que ficava por perto. Eu chegava até ele com uma mala grande, antiga, um cabelo mal preso, meio solto meio embaraçado e um casaco de viajante de cor clara, séria. Por baixo talvez um vestido, talvez sem sapatos. Uma mulher antiga, uma presença contemporânea.

Eu sentava no banco sem a mala, desconfortável. Trazia a mala para perto. Deitava em cima dela e do banco. A mala era mais dura do que o banco. Tentei posições diversas, as mais estranhas, para deitar com ela. A performance era uma prova da disciplina de dança, eu me formava atriz, eu pensava em Pina. Trazia o palco, o corpo, a vida, toda a minha expressão, as questões latentes ao meu desprendimento de atriz.

Quando demonstro não haver posição possível, que aquela mala não fazia mais sentido, quando finalmente me desprendo, percebo meu público de forma marcada. Muita gente me olha (que sensação essa), entre a entrada da faculdade e a cantina. Levanto e carrego a mala alguns passos adiante. Ali dentro, a atriz se sente constrangida com a sua proposta, mas é ela mesma quem se impulsiona porque sabe que depois do primeiro passo não há outra saída além dessa de seguir em frente.

Me dirijo com a minha mala incômoda mais alguns passos até meu público farto, percorrendo os olhos de todos. Abro as travas da mala para que escape dela o seu conteúdo. Calcinhas de garota, diversas. Contrastam com a sobriedade do resto. Ergo a mala, um pouco desajeitada, até mais ou menos a altura da cintura. Me aproximo ainda. Luto com o peso da mala com um braço e com o outro entrego uma a uma as calcinhas, as cores, os babados e as fitas que não fazem mais sentido. O público respira, curioso. Olhos nos olhos, um clima ritualístico.

Semi risos contrastam com a minha expressão limpa. O tremor interno dos ritos. A nudez da arte. A linha tênue que a gente atravessa e transforma tudo. De oculto a revelado. Intimidade distribuída. A inocência, uma bela lembrança. Aos poucos, eles entendem que me ajudam em minha passagem. Calcinhas entregues. A mala, em desuso, abandonada. Com o alívio de não carregar mais nada supérfluo, uma frase de Tadeusz Kantor escapa da minha garganta: “Não se entra impune para o teatro.”